quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Infância com histórias dentro


     Sou do tempo em que brincar era quase uma profissão. E era uma tarefa levada muito a sério. Nasci nos anos 80 e brinquei durante todos os 90, devo ter estoirado os últimos cartuchos da brincadeira já depois de 2000, esse ano estranho com tantos zeros. Sou do tempo em que tudo o que me rodeava era visto como uma ferramenta para uma futura brincadeira. 
     Se estava no WC inventava uma farmácia, se ia à dispensa podia imaginar que estava num supermercado e fazia lojas de roupa em cima de camas e ao lado de guarda-fatos como quem faz um crumble se tiver muitas maçãs.  Um simples caminho estreito de cimento podia ser uma passerelle e uma árvore de tronco grosso podia ser uma aldeia ou uma cidade. Molas da roupa podiam ser pessoas e quem sabe poderíamos ver uma expressão facial numa batata assada a murro. 
     O tempo era sempre curto e era preciso correr para brincar, era preciso gritar como se isso fosse acelerar a viagem até aos objectos de brincadeira. Sou do tempo em que éramos felizes por poder riscar e fazer desenhos numa parede, sou do tempo em que ter 4 ou 5 anos não nos impossibilitava de ter filhos e ainda sem saber ler ou lavar o cabelo sozinha já tinha duas filhas que levava para todo o lado num carrinho com mala de roupa atrás. Sou desse tempo em que 4 paredes podiam ser qualquer parte do mundo e que uns sapatos altos calçados não me cansavam os pés. Daquele tempo em que um cabo de vassoura dava para passar uma tarde em cantorias na varanda a inventar letras e rimas com músicas ouvidas na televisão. Sou do tempo de contar as horas para o toque e ir a correr para ver a saga do Dragon Ball.
     Hoje dão-se os smartphones, os tablets ou computadores para entreter os miúdos aborrecidos em vez de dar essa chance para uma viagem pela imaginação. Hoje eles já sabem tudo sobre as máquinas, mas não sabem consultar um livro ou uma biblioteca. Hoje sabem tudo sobre o mundo sem ter experimentado sair por aí e voltar já quase de noite depois de ter sido enfermeira, advogado ou balconista apenas numa tarde. 
     Hoje eles não sabem a magia dos "entas" e de como era bom chegar a casa e ter só um lanche para comer e um montão de brincadeiras para tratar. Parece que nascem ensinados, mas às vezes vejo nas suas carinhas uma ligeira apatia apenas quebrada nas brincadeiras de domingo à tarde no parque. As conversas já são de adulto e as preocupações precoces roubam o tempo para sonhar, falar com as cadeiras da sala como se fossem pessoas ou cantar para as flores no jardim. Hoje a agenda é demasiado cheia e sem possibilidade de tirar o dia para ficar só a brincar. E que chato que é não poder tirar o dia para fazer só o que nos apetecer. 

     Love
     C.

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