segunda-feira, 27 de abril de 2015

"Para tornar o teu dia mais feliz"


     - Não percebo como consegues trincar o gelo! É arrepiante. - disse Ema depois de ter cruzado a perna e finalmente se sentir confortável naquela cadeira de madeira.
     Marta não respondeu e continuou a fazer aquele barulhinho de gelo a partir. Apenas pensou, "Não percebo como consegues ter uma opinião formada sobre tudo nesta vida e não sabes tratar da tua". Eram amigas desde o liceu e já tinham passado por muito juntas, mas as vezes que haviam chorado juntas de emoção e de tristeza eram equivalentes às vezes que tinham discutido em voz muito alta e com bater de portas com força no final.
     - Pequenos prazeres, Ema. Nem tentes entender. - Maria respondeu por ela. Era a mais sensata das três e a única a quem davam crédito em quase todos os assuntos mesmo tendo sido a última a fazer parte desta aliança. 
     As três mulheres sentadas naquela mesa tinham-se tornado inseparáveis desde o primeiro dia do ano do curso de direito. Tão diferentes que conseguiam na perfeição completar um puzzle como mais nenhum grupo naquela turma.
     Maria estava prestes a dar à luz e isso fazia dela uma bomba relógio naquela mesa de esplanada. Quando esse momento chegasse, ela sabia que finalmente estaria a realizar o sonho de toda a sua vida. As duas amigas tinham-lhe dito que estava a dar um passo maior que as pernas e que uma criança nesta altura iria pôr em causa toda a carreira promissora que tinha pela frente. Encarava isto como uma preocupação verdadeira por parte das duas, mas nem assim se intimidou. Ema e Marta sabiam que ela era a mais feliz das três. E isso era um facto assumido pelas duas em várias conversas. Não se tratava de inveja maldosa, mas apenas de uma inveja boa de quem ansiava também poder um dia atingir tal estado de plenitude mental e sentimental. Um marido perfeito e preocupado além de ser charmoso e gentil para toda a gente, um emprego estável e em ascenção: ela era a menina perfeita do grupo. Perceberam isso desde o dia em que ela fez aquela intervenção assertiva na aula de direito constitucional e todos na sala ficaram impressionados.
      Ema era a mais problemática do trio. Inconstante e um pouco louca, podia dizer-se. Ela mesma admitia que a sua personalidade era como uma javali à deriva numa aldeia, podia fazer estragos incalculáveis. Ora parecia feliz e com tudo planeado na sua vida, ora se fechava no seu casúlo e ficava semanas sem dizer nada às amigas. Já estavam habituadas, mas no fundo este comportamento deixava-as apreensivas. Tudo isto podia levar a querer que fosse bipolar, mas não era: era só uma pessoa que nunca estava bem mesmo que tudo à sua volta parecesse espectacular ao olhar dos outros. Era assim desde pequena e nada parecia conseguir mudá-la. Traumas de infância não tinha, desilusões amorosas as normais e por isso ninguém conseguia perceber muito bem este feitio peculiar. Já Marta parecia feliz na sua vida emocional e no seu recente emprego. 
     Naquela tarde o encontro tinha sido um pretexto para se despedirem de Maria antes dela ter de ir a "correr" para a maternidade. A bebé Joana estava prevista para os três dias a seguir. Despediram-se já um pouco emocionadas e seguiram para os seus destinos. 
      No dia a seguir Maria começou a sentir as primeiras contrações. Uma contração forte que durou cerca de 60 segundos deixou-a nervosa. Repetiu-se 20 minutos depois. No outro lado da cidade, Marta estava a sair do trabalho cheia de pastas e sacos de compras que tinha feito à hora de almoço. Meteu-se no carro e conduziu até casa ao som de "Glory Box". Maria começou a sentir contrações com menos tempo de intervalo. Uma contração muito intensa levou-a a ligar ao marido. Quinze minutos depois outra contração. O marido, já a caminho de casa, tentava acalmá-la. Trânsito em hora de ponta. Mais uma contração. Maria desistiu de contar os minutos e só queria chegar ao hospital. Também Marta queria chegar a casa e descalçar aqueles sapatos de dez centímetros. Algum tempo depois e sempre com aquela música em repeat lá conseguiu estacionar o carro. Desligou o motor, carregou os sacos e entrou no prédio e depois no elevador. Já em casa, pousou as compras, lavou as mãos e meteu uma máquina de roupa branca a lavar.
     Finalmente o marido de Maria tinha enfiado a chave na fechadura e este som foi suficiente para tranquilizá-la. Beijou-a na testa e segurou-a para que se amparasse nele. Sairam com um saco pela mão a caminho do hospital. Quinze minutos depois estavam a entrar na maternidade. Marta já tinha descalçado os sapatos e despido a roupa formal que usou no julgamento que tinha feito durante a manhã. Sentou-se na mesa da cozinha e abriu uma garrafa de vinho tinto. Ligou a aparelhagem com aquela música de novo. E deixou-se afundar naquela cadeira de veludo. Dez minutos depois foi até ao WC e abriu a caixa de primeiros socorros. De lá retirou todos os comprimidos que estavam guardados num boião com um autocolante onde se podia ler: "Para tornar o teu dia mais feliz." Naquele frasco tinham estado, anteriormente, rebuçados oferecidos por alguém. Agora estavam, nas mesmas cores, dezenas de comprimidos. Engoliu tudo sem hesitar e empurrou com um gole longo de vinho. Ficou ali a afundar-se cada vez na cadeira de veludo até que caiu dura no chão. A precisamente nove km de distância daquela casa estava Maria. Acabara de ouvir pela primeira vez o choro do seu bebé e definitivamente aquele era o momento mais feliz da sua vida.
     Na casa de Marta ouvia-se a máquina de roupa a centrifugar e aquela música continuava a tocar.
    

quarta-feira, 22 de abril de 2015

ritual.

 
     
     Ela apagava o cigarro, lavava os dentes e esperava. Depois de meia hora, ele continuava sem aparecer. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. Lia um livro e bebia água. Nem sinal dele. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. Olhava para o tecto e fazia zapping na TV. Uma hora depois a campainha continuava sem tocar. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. O ritual repetia-se, no geral, umas 5 vezes. Era assim todas as quartas-feiras. Ele demorava, mas nunca falhava ao encontro. 
     Pousava o casaco e a mala do portátil em cima do cadeirão e só depois a cumprimentava. O cumprimento era sempre o mesmo, afagava-lhe os cabelos e deslizada a mão pelo ombro até ao cotovelo. Falavam sobre meia dúzia de banalidades, mas nada de muito profundo e comprometedor. Ambos sabiam que era assim que funcionava: um dia por semana, 4 vezes por mês, sem grandes conversações e sem grandes intimidades além das físicas. Sem cobranças, sem telefonemas fora de horas, sem compromissos sociais e sem obrigações. 
      Normalmente faziam uma refeição leve que ela preparava em menos de 30 minutos e bebiam um vinho que ele trazia, sempre tinto e sempre diferente. Depois disto deixavam-se estar no sofá em silêncio por um bom bocado enquanto a música continua a tocar baixinho. Era como se fosse uma preparação para o que se ia passar a seguir. Era ele quem tomava a iniciativa dirigindo-se para o quarto, ela ia atrás devagar como se abrandar o passo fosse transmitir-lhe que aquilo não passava apenas de uma sessão de sexo. Na verdade, ela sentia muito mais do que isso. Ela sonhava com o dia em que ele ia entrar naquela casa e diria que ia começar a encontrar-se com ela mais vezes porque simplesmente lhe fazia falta dividir o mesmo espaço, o mesmo oxigénio e o mesmo suor por mais tempo. Era esta a sua visão romântica e utópica da coisa. O seu lado racional dizia-lhe: "Homens como estes não se prendem. Não querem construir nada a não ser uma conta no banco e uma casa de férias". E era verdade. Ele era assim. Sem tirar nem pôr. Ele até podia apresentá-la à família e aos amigos, mas isso não ia tornar o caso mais sério. Nem sequer sabia se queria filhos quanto mais pensar em escolher uma mãe para eles e alguém com quem dividir o resto dos cereais, contas ou problemas e dores de cabeça.
     Aumentar a frequência dos encontros era deixar naquela mulher uma esperança ainda maior do que aquela que ela já escondia nos seus pensamentos. Ele não queria ter de chegar ao ponto de ter de lhe dizer: "Acabou". Isso daria muito trabalho. Ele preferia manter a distância a ter de um dia tomar uma atitude mais drástica. Parecia mais fácil e ela não dava mostras de ser problemática.
      E assim, como sempre, ele saía de fininho depois dela ter adormecido para não ter de se despedir. Sempre odiara as despedidas e tinha medo do que ela poderia dizer nesse momento de fragilidade.