terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Carta de uma voluntária










    

     "Todas as noites perto da hora do sol se pôr há um grupo de pessoas que largam o conforto do lar, seja em noites de verão ou de chuva e inverno, para dar um pouco de conforto a outros. Essas pessoas somos nós e nós não precisamos de ter um nome, temos simplesmente esta Missão. 

     Parece irónico, mas somos o CASA. Na ausência de um teto, trabalhamos 365 dias por ano para construir algo maior e que para muitos pode ser invisível aos olhos, mas para nós é bem real. Somos 1025 voluntários, 2050 mãos ao dispor desta causa. Todos os dias, estas mãos cozinham 2968 refeições e nelas, além de alimentos e especiarias, colocamos amor, colocamos dedicação e carinho. 

     Para os que têm teto, mas pouco ou nada mais além disso, o CASA criou o CASA Amiga que distribui cabazes com bens alimentares e produtos de higiene a cerca de 140 famílias. E assim se transformam um milhar de famílias, numa família enorme. 

     Ser voluntário não é bem um chamamento, mas sabemos que, naquele dia, àquela hora, naquele local, algo dentro de nós mudou. "Alguém" nos disse que tínhamos de fazer alguma coisa e essa coisa era dar o melhor de nós a pessoas que não conhecemos.
Se o fazemos por altruísmo ou egoísmo, até para nós é de vez em quando uma incógnita, mas a verdade é que o fazemos de coração aberto. 

     Não damos só uma refeição quente que confecionámos poucas horas antes de ir para a rua. Damos sorrisos, damos abraços, damos histórias, damos atenção. Damos tudo o que está ao nosso alcance para mudar a noite de alguém que nos deixa entrar na sua vida mesmo que seja apenas por alguns minutos.


     Esta cidade parece pequena demais, se pensarmos a quantidade de pessoas que dorme sem um teto. Deviam ser menos e o nosso sonho é mesmo esse. Que sejam cada vez menos aqueles a precisar de nós. 

       As ruas são deles, mas são nossas também. 

     Aqui por Lisboa, todos os dias cozinhamos 400 refeições. Entregamo-las em mãos e neste gesto queremos dar mais do que um simples prato de comida. 

     Um dia vamos chegar àquela paragem e o senhor José vai dizer-nos que o senhor Rui saiu da rua. Nessa noite, será uma refeição a menos e será um sorriso a mais. Em embora não tenhamos contribuído diretamente para esse desfecho, a nossa grande missão vai assim ficando cumprida aos poucos. 

      Abraços, 

      Uma voluntária"


     As fotos são do Nuno Pereira e podem ver mais aqui: http://nupereira.wix.com/photography

sexta-feira, 10 de julho de 2015

fim da estrada





     Faz hoje três semanas que ela partiu. Durante estas três semanas só saiu de casa para trabalhar. Fê-lo como se fosse um acto automático que não se podia dar ao luxo de colocar atrás das costas, já que tinha responsabilidades para com a chefia e os seus colegas.
     Durante estes dias teve um nó na garganta, um nó estomago e outro maior no corpo todo. Mal comeu e teve de fazer mais um buraco no cinto. Cancelou as corridas com o grupo com quem seguia umas 3 vezes por semana alegando muito trabalho, deixou a pilha de roupa suja e limpa acumular-se no quarto de arrumações, não mudou a areia à gata quando devia e não fez a barba.
     Dia sim, dia não, chorou compulsivamente como uma criança e desejou arrancar toda a dor do peito com as próprias mãos ou com a ajuda de uma faca afiada. Um dia com mais esperança para seguir em frente e no a seguir com o dobro do peso do corpo para sequer se movimentar de uma divisão para a outra em casa.
     Ela levou tudo. E levou tudo de uma vez para não ter de voltar a olhá-lo nos olhos e sentir aquela culpa que ainda hoje a deve queimar. Ela não o queria ter feito ou talvez não daquela maneira. Ele merecia mais, merecia que ela não tivesse cedido à sua própria estupidez. 
     Era sempre ela que fazia os planos e ele ficava feliz por fazer parte deles, por vê-la a criar um futuro para ambos. Se os sonhos partiam dela porquê cortar esta história de repente por uma momento que se pode chamar quase de distração? Era isto que o atormentava desde o dia em ela lhe contara o que fez naquela noite depois de sair do trabalho. Eram felizes, tinham uma relação perfeita, não discutiam e por isso ele só queria perceber o que a tinha levado a fazer aquilo. Ela nunca conseguiu responder a essa pergunta, não conseguiu ser conclusiva. Divagava, divagava até aquela conversa o cansar profundamente.
      No dia da sua partida ela pareceu ter despejado um frasco de perfume inteiro. O seu cheiro impestou a casa por mais cinco dias mesmo ele tendo aberto todas as janelas para fazer corrente. Ficou o aroma nas paredes, a presença em cada porcaria que ela tinha comprado, ficou o som da sua voz quando ele abria qualquer porta ou armário. Era como um fantasma que teimava em não seguir a sua caminhada. Tudo o fazia lembrar dela e por breves instantes dava consigo a tentar desculpar o seu acto inconsequente como se o simples facto de ser humana a pudesse desculpar. Não podia, ele não podia colocar uma pedra sobre o assunto. Ele queria mais, ele queria-a a de volta mas sabia que jamais poderia deitar-se naquela cama da mesma forma. Eram sentimentos contraditórios nos quais pensava durante todo o dia sem pausas.
     Mas hoje tudo era novo e ele nem sabia muito bem o que tinha mudado. Tomou um pequeno-almoço de hotel, calçou as sapatilhas de corrida e correu durante duas horas, sem pausas. No final tinha a roupa ensopada, o coração a mil e as pernas dormentes. Encostou-se a uma parede, respirou fundo e percebeu que estava tudo mais longe do que ele podia imaginar.

     Love
     C.


terça-feira, 30 de junho de 2015

a última festa.



      Eram 21:22 quando chegou a casa e reparou nas horas no relógio do micro-ondas. Estava exausta, esfomeada e a precisar de um banho para se limpar de tudo que se tinha passado naquele dia avassalador. 
      Ligou a televisão e estava outra vez a dar aquele filme, parecia uma praga e talvez fosse um sinal de qualquer coisa que não sabia identificar. A verdade é que cada vez que tinha um dia péssimo e chegava a casa mais para lá do que para cá, aquele filme estava ali a dar como se estivesse à sua espera.
     Começou a sentir uns suores estranhos. Não seria do calor, afinal de contas estava um dia de Outono e o tempo tinha começado a arrefecer há duas semanas. Além dos suores, apoderava-se dela uma náusea que teimava em não passar e que bem se podia dever ao facto de ter estado umas 6 horas sem meter nada na boca. Desistiu do filme e desligou a TV. Já na cozinha bebeu um copo de água gelada e mastigou uma banana. Caiu na cama de camisola e cuecas e adormeceu profundamente.
     Eram 4:00 da manhã quando o seu coração parou. Olhos fechados, cabelos despenteados sobre os lençóis brancos. O seu corpo ficou gelado. E quantos mais minutos passavam mais roxa se tornava toda a sua pele branca. O despertador tocou às 7:40 e assim ficou até serem 9:30 quando chegou a Dona Elvira e viu a "menina" morta e desnuda da cintura para baixo. 
     Seguiu-se o processo normal. Estava na morgue passadas algumas horas. Aliás, estava o seu corpo desta vez completamente nu e cada vez com pior aspecto. Ela estava a ver aquilo tudo como se já não pertencesse mais àquele monte de ossos, músculos e pele. De facto não pertencia, agora era algo que nem ela conseguia qualificar e só de imaginar o que lhe tinha acontecido apetecia-lhe pegar no telemóvel e mandar uma mensagem para o seu grupo de amigos onde escreveria: "Eu morri malta, mas vocês nem imaginam o que aconteceu depois. Eu consigo ver-vos e sei de tudo que se está a passar agora convosco, enquanto pensam no meu funeral e escrevem cartas de despedida para ler na minha hora fúnebre. Ah e a morte parece que me emagreceu um pouco, estou gira para quem faleceu há menos de um dia."
     Não o pode fazer, por isso fica atenta a todo o ritual que se segue depois de a terem dissecado e cosido de forma a evitar o transtorno por parte das pessoas que a verão num caixão. Deixaram-na bonita até, vestida de branco e com os cabelos penteados. "De quem seria a ideia de me colocarem umas pérolas brancas nas orelhas se eu nunca uso brincos desse tipo?", pensou. Ainda assim achou-se bem melhor do que em alguns dias de quando ainda estava viva.
     São três da tarde e a igreja começa a encher. O funeral marcado para as 15:30 foi na igreja onde a batizaram, fará 32 anos no próximo mês. Achou o facto curioso. Sentou-se ao lado da mãe que não chorava, mas tinha a expressão mais dolorosa que alguma vez vira em alguém. Apeteceu-lhe afagá-la e beijar-lhe as mãos, mas já não podia. Na terceira fila estavam as duas melhores amigas, as que nunca a tinham abandonado em nenhuma circunstância e que escreveram cartas de despedida que não conseguirem ler. Não sabia bem o que estava a sentir naquele momento, mas estava a concretizar o seu maior medo: morrer e deixar os que amava a sofrer pela sua partida. O que a assustava não era morrer, nem tão pouco ter uma morte dolorosa, era saber que ficariam a chorar por ela. 
     Concentrou-se na "plateia", sexta fila de bancos e lá estavam as colegas do trabalho. Invejosas e falsas era o que achava delas e por isso jamais imaginara que viriam ao seu funeral chorar por uma coisa pela qual não tinham qualquer tipo de carinho, quanto mais empatia. Só podia ser para a fotografia, pensou.
      A mãe levantou-se e agarrou-se ao seu caixão onde chorou durante tanto tempo que ela não conseguiu contar. Beijou-a na face gélida e seca e depois disso resignou-se como se tivesse terminado o ritual de despedida. Não a quis ver a ser enterrada, a sua menina era demasiadamente especial para a imaginar a ser comida pela terra e pelos bichos. Conservou assim a sua imagem: branca e imaculada.
     Mas a hora da verdade estava prestes e chegar. Quase que podia sentir a terra a cair no caixão e o cheiro a bafio. Ali estava ela prestes a terminar como terminamos todos. Mais um tempo e seria apenas um espaço oco dentro de um caixão lacado e forrado de tecido branco.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Um retrato em Paris.


      Ela sentia-se presa numa maldição. Era como se a sua cara não tivesse uma transposição física, era como se não tivesse alma.
Tinha quinze anos a primeira vez que visitou Paris numa viagem de família. Sentia-se entusiasmada por pôr em prática as frases que treinara em frente ao espelho com a ajuda de um CD. No terceiro dia na cidade a mãe sugeriu que visitassem o bairro de Montmartre. Depois de subirem até ao Sacré Coeur e terem bebido um chocolate quente foram até à Place du Tertres. Quando viu todos aqueles pintores ficou verdadeiramente impressionada e pensou: -“Eu tenho de ter um retrato meu para nunca mais me esquecer que alguém me pintou sobre o céu de Paris”. Não conseguia evitar esta visão romântica da cidade que sempre viu retratada nos filmes.
     Estava deslumbrada com aquela cidade e ao contrário do que seria de esperar queria ver tudo que fossem museus, igrejas, monumentos. Tinha decidido que a Disneyland Paris ficaria para o fim, no caso de terem ainda algum tempo livre. Naquele sítio sentia-se como se fizesse parte de todas as paredes que a rodeavam. Deu uma volta pela praça e olhou, atentamente, para todos os quadros de retratos expostos a fim de decidir qual seria o pincel que ia materializar as suas feições no papel.    Decidiu que preferia um retrato clássico pintado a preto e branco e em carvão. Comparou os desenhos com as fotografias dos modelos que apareciam expostas ao lado e depois de quarenta minutos percebeu que o senhor de boina cinzenta era o melhor de todos. Ele conseguira captar nos seus três quadros expostos a verdadeira expressão dos modelos e o seu traço era perfeito e suave. Se aquele pintor não fizesse um bom trabalho mais ninguém faria, pensou. Depois da decisão tomada, soltou uma frase no seu francês tímido: 
     - Bonjour, pourriez-vous déssiner mon portrait, s'il vous plait? Vous êtes libre maintenant?       
     O homem olhou-a por dois minutos e não disse nada. Pegou no lápis e carvão e disse: 
    - Asseyez-vous sur cette chaise, mademoiselle, et regardez-moi. Je vais commencer.     Ela assentiu com a cabeça e fez o que o homem lhe pediu. Durante duas horas quase não se mexeu e teve o maior cuidado para respirar o menos profundamente possível. Estava tão ansiosa pelo resultado que durante aquele tempo não conseguiu pensar em mais nada. De vez em quando percebia algum desconforto no pintor, mas achou que pudesse ser apenas por causa do sol que batia forte. Quando o homem terminou conseguiu ver na sua expressão um verdadeiro desalento. Levantou-se, pousou o lápis no cavalete e disse em francês:
      -Pinto desde os dez anos e faço retratos aqui há mais de quinze. Nunca tinha visto uma coisa assim. Peço que me desculpe, mas não a consigo desenhar. Vejo-a e compreendo os seus traços, mas a sua face é impossível de materializar em papel. Não consigo explicar este fenómeno e provavelmente achará que sou louco, talvez seja. Procure outra pessoa que consiga fazê-lo. O que desenhei está aqui e não lhe cobrarei nada.
      Ela ficou sem saber o que dizer e não estava a perceber bem o que o homem lhe queria dizer. Quando pegou no papel ficou estática. Não se reconhecia naquele desenho nem fazia ideia de quem poderia ser aquela pessoa. O pintor desvirtuou a sua expressão completamente. Ainda conseguia ver qualquer coisa de si, mas não sabia explicar o quê. Seria o formato dos olhos? Talvez as maçãs do rosto. Não conseguia perceber o que daquela imagem lhe pertencia, mas era muito pouco.
      A mãe encorajou-a a procurar outro pintor mas ela negou-se a visitar aquele espaço de novo e desistiu da ideia de ter um retrato pintado em Paris.
     Durante os anos seguintes visitou Roma, Veneza, Londres, Atenas e mais umas quantas cidades europeias. Em todas elas pediu uma retrato e em todas elas se passou exatamente o mesmo. Ninguém a conseguiu desenhar e ninguém conseguia explicar aquele estranho fenómeno. Os desenhos finais eram perfeitos e muito bem trabalhados, mas ela nunca se conseguia ver naqueles traços de carvão. Era como se a sua expressão não tivesse alma nem significado.
Aos vinte e nove anos, prestes a completar os trinta voltou a Paris para o casamento de uma amiga. Não sabia muito bem o que esperar daquela viagem. Tinham passado quase quinze anos desde a última visita e durante todo esse tempo a “maldição” do retrato não lhe saía da cabeça.
O casamento seria numa quinta na periferia da cidade e antes de voltar a Portugal teria três dias para visitar alguns locais de Paris. Os convidados eram na sua maioria franceses e por isso não conhecia quase ninguém, o que não a impediu de se divertir bastante. Estes quinze anos deram-lhe a vantagem de ter tido tempo para aperfeiçoar a língua francesa e por isso conseguiu manter conversas casuais mas estruturadas com quase todos os convidados da mesa. Sabia de antemão que calharia na mesa dos solteiros e isso animava-a já que o fim de uma longa relação a tinha deixado com marcas duras e sentia que precisava de conhecer pessoas novas.
     Não havia, propriamente, ninguém na mesa que tivesse captado a sua especial atenção apesar de serem todos homens bastante atraentes e da sua faixa etária. Aquela relação tinha-a massacrado tanto que senti-a que perdera o jeito para se apaixonar de novo.
     Já era tarde quando cortaram o bolo, mas a festa continuava tão animada que mal sentia os pés de tanto dançar. Quando finalmente se sentou na mesa com a sua fatia de bolo reparou que o guardanapo do seu lado esquerdo tinha sido desenhado por alguém. Pensou se poderia ter sido mesmo o Jean.
      Jean era o rapaz que tinha estado sentado ao seu lado durante todo o jantar. Pegou no guardanapo e aí viu o desenho com melhor nitidez. Não conseguia acreditar no que estava a ver. Era o seu retrato feito com uma caneta bic. Era ela sem tirar nem pôr, com o cabelo apanhado e os seus brincos de pérola. Quinze anos depois alguém tinha conseguido fazer o seu retrato e estava em Paris.
      Não conseguiu disfarçar a emoção infantil por se ver finalmente desenhada num papel e mastigou o bolo sem sequer lhe sentir o gosto tal era a excitação. Jean voltou à mesa com o seu pedaço de bolo. Não queria ser evasiva, mas tinha que lhe perguntar:
      - Foste tu que desenhaste isto? – Perguntou directamente.
      -Sim, porquê? Quer dizer, espero que não te importes. Como não sei dançar tinha que me entreter com qualquer coisa. Depois das dedicatórias, aproveitei a caneta e comecei a desenhar. 
     Ela sorriu e depois riu muito. Soltou umas quantas gargalhadas seguidas. Não sabia bem se de alívio se de felicidade. Ele continuava sem entender nada, mas também não perguntou. Limitou-se a acompanhá-la naquilo que parecia uma parvoíce. Riu muito alto com ela, não sabia se do álcool se por solidariedade. Ela levantou-se, arrastou-o para a pista e dançaram ao som de um música que nenhum dos dois conhecia.
      Ele afinal sabia dançar e ela tinha uma alma e um retrato desenhado em Paris. 

      Love
      C.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

"Para tornar o teu dia mais feliz"


     - Não percebo como consegues trincar o gelo! É arrepiante. - disse Ema depois de ter cruzado a perna e finalmente se sentir confortável naquela cadeira de madeira.
     Marta não respondeu e continuou a fazer aquele barulhinho de gelo a partir. Apenas pensou, "Não percebo como consegues ter uma opinião formada sobre tudo nesta vida e não sabes tratar da tua". Eram amigas desde o liceu e já tinham passado por muito juntas, mas as vezes que haviam chorado juntas de emoção e de tristeza eram equivalentes às vezes que tinham discutido em voz muito alta e com bater de portas com força no final.
     - Pequenos prazeres, Ema. Nem tentes entender. - Maria respondeu por ela. Era a mais sensata das três e a única a quem davam crédito em quase todos os assuntos mesmo tendo sido a última a fazer parte desta aliança. 
     As três mulheres sentadas naquela mesa tinham-se tornado inseparáveis desde o primeiro dia do ano do curso de direito. Tão diferentes que conseguiam na perfeição completar um puzzle como mais nenhum grupo naquela turma.
     Maria estava prestes a dar à luz e isso fazia dela uma bomba relógio naquela mesa de esplanada. Quando esse momento chegasse, ela sabia que finalmente estaria a realizar o sonho de toda a sua vida. As duas amigas tinham-lhe dito que estava a dar um passo maior que as pernas e que uma criança nesta altura iria pôr em causa toda a carreira promissora que tinha pela frente. Encarava isto como uma preocupação verdadeira por parte das duas, mas nem assim se intimidou. Ema e Marta sabiam que ela era a mais feliz das três. E isso era um facto assumido pelas duas em várias conversas. Não se tratava de inveja maldosa, mas apenas de uma inveja boa de quem ansiava também poder um dia atingir tal estado de plenitude mental e sentimental. Um marido perfeito e preocupado além de ser charmoso e gentil para toda a gente, um emprego estável e em ascenção: ela era a menina perfeita do grupo. Perceberam isso desde o dia em que ela fez aquela intervenção assertiva na aula de direito constitucional e todos na sala ficaram impressionados.
      Ema era a mais problemática do trio. Inconstante e um pouco louca, podia dizer-se. Ela mesma admitia que a sua personalidade era como uma javali à deriva numa aldeia, podia fazer estragos incalculáveis. Ora parecia feliz e com tudo planeado na sua vida, ora se fechava no seu casúlo e ficava semanas sem dizer nada às amigas. Já estavam habituadas, mas no fundo este comportamento deixava-as apreensivas. Tudo isto podia levar a querer que fosse bipolar, mas não era: era só uma pessoa que nunca estava bem mesmo que tudo à sua volta parecesse espectacular ao olhar dos outros. Era assim desde pequena e nada parecia conseguir mudá-la. Traumas de infância não tinha, desilusões amorosas as normais e por isso ninguém conseguia perceber muito bem este feitio peculiar. Já Marta parecia feliz na sua vida emocional e no seu recente emprego. 
     Naquela tarde o encontro tinha sido um pretexto para se despedirem de Maria antes dela ter de ir a "correr" para a maternidade. A bebé Joana estava prevista para os três dias a seguir. Despediram-se já um pouco emocionadas e seguiram para os seus destinos. 
      No dia a seguir Maria começou a sentir as primeiras contrações. Uma contração forte que durou cerca de 60 segundos deixou-a nervosa. Repetiu-se 20 minutos depois. No outro lado da cidade, Marta estava a sair do trabalho cheia de pastas e sacos de compras que tinha feito à hora de almoço. Meteu-se no carro e conduziu até casa ao som de "Glory Box". Maria começou a sentir contrações com menos tempo de intervalo. Uma contração muito intensa levou-a a ligar ao marido. Quinze minutos depois outra contração. O marido, já a caminho de casa, tentava acalmá-la. Trânsito em hora de ponta. Mais uma contração. Maria desistiu de contar os minutos e só queria chegar ao hospital. Também Marta queria chegar a casa e descalçar aqueles sapatos de dez centímetros. Algum tempo depois e sempre com aquela música em repeat lá conseguiu estacionar o carro. Desligou o motor, carregou os sacos e entrou no prédio e depois no elevador. Já em casa, pousou as compras, lavou as mãos e meteu uma máquina de roupa branca a lavar.
     Finalmente o marido de Maria tinha enfiado a chave na fechadura e este som foi suficiente para tranquilizá-la. Beijou-a na testa e segurou-a para que se amparasse nele. Sairam com um saco pela mão a caminho do hospital. Quinze minutos depois estavam a entrar na maternidade. Marta já tinha descalçado os sapatos e despido a roupa formal que usou no julgamento que tinha feito durante a manhã. Sentou-se na mesa da cozinha e abriu uma garrafa de vinho tinto. Ligou a aparelhagem com aquela música de novo. E deixou-se afundar naquela cadeira de veludo. Dez minutos depois foi até ao WC e abriu a caixa de primeiros socorros. De lá retirou todos os comprimidos que estavam guardados num boião com um autocolante onde se podia ler: "Para tornar o teu dia mais feliz." Naquele frasco tinham estado, anteriormente, rebuçados oferecidos por alguém. Agora estavam, nas mesmas cores, dezenas de comprimidos. Engoliu tudo sem hesitar e empurrou com um gole longo de vinho. Ficou ali a afundar-se cada vez na cadeira de veludo até que caiu dura no chão. A precisamente nove km de distância daquela casa estava Maria. Acabara de ouvir pela primeira vez o choro do seu bebé e definitivamente aquele era o momento mais feliz da sua vida.
     Na casa de Marta ouvia-se a máquina de roupa a centrifugar e aquela música continuava a tocar.
    

quarta-feira, 22 de abril de 2015

ritual.

 
     
     Ela apagava o cigarro, lavava os dentes e esperava. Depois de meia hora, ele continuava sem aparecer. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. Lia um livro e bebia água. Nem sinal dele. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. Olhava para o tecto e fazia zapping na TV. Uma hora depois a campainha continuava sem tocar. Ela acendia um cigarro, fumava e lavava os dentes. O ritual repetia-se, no geral, umas 5 vezes. Era assim todas as quartas-feiras. Ele demorava, mas nunca falhava ao encontro. 
     Pousava o casaco e a mala do portátil em cima do cadeirão e só depois a cumprimentava. O cumprimento era sempre o mesmo, afagava-lhe os cabelos e deslizada a mão pelo ombro até ao cotovelo. Falavam sobre meia dúzia de banalidades, mas nada de muito profundo e comprometedor. Ambos sabiam que era assim que funcionava: um dia por semana, 4 vezes por mês, sem grandes conversações e sem grandes intimidades além das físicas. Sem cobranças, sem telefonemas fora de horas, sem compromissos sociais e sem obrigações. 
      Normalmente faziam uma refeição leve que ela preparava em menos de 30 minutos e bebiam um vinho que ele trazia, sempre tinto e sempre diferente. Depois disto deixavam-se estar no sofá em silêncio por um bom bocado enquanto a música continua a tocar baixinho. Era como se fosse uma preparação para o que se ia passar a seguir. Era ele quem tomava a iniciativa dirigindo-se para o quarto, ela ia atrás devagar como se abrandar o passo fosse transmitir-lhe que aquilo não passava apenas de uma sessão de sexo. Na verdade, ela sentia muito mais do que isso. Ela sonhava com o dia em que ele ia entrar naquela casa e diria que ia começar a encontrar-se com ela mais vezes porque simplesmente lhe fazia falta dividir o mesmo espaço, o mesmo oxigénio e o mesmo suor por mais tempo. Era esta a sua visão romântica e utópica da coisa. O seu lado racional dizia-lhe: "Homens como estes não se prendem. Não querem construir nada a não ser uma conta no banco e uma casa de férias". E era verdade. Ele era assim. Sem tirar nem pôr. Ele até podia apresentá-la à família e aos amigos, mas isso não ia tornar o caso mais sério. Nem sequer sabia se queria filhos quanto mais pensar em escolher uma mãe para eles e alguém com quem dividir o resto dos cereais, contas ou problemas e dores de cabeça.
     Aumentar a frequência dos encontros era deixar naquela mulher uma esperança ainda maior do que aquela que ela já escondia nos seus pensamentos. Ele não queria ter de chegar ao ponto de ter de lhe dizer: "Acabou". Isso daria muito trabalho. Ele preferia manter a distância a ter de um dia tomar uma atitude mais drástica. Parecia mais fácil e ela não dava mostras de ser problemática.
      E assim, como sempre, ele saía de fininho depois dela ter adormecido para não ter de se despedir. Sempre odiara as despedidas e tinha medo do que ela poderia dizer nesse momento de fragilidade.