Ela sentia-se presa numa
maldição. Era como se a sua cara não tivesse uma transposição física, era como se
não tivesse alma.
Tinha quinze anos a primeira vez
que visitou Paris numa viagem de família. Sentia-se entusiasmada por pôr em
prática as frases que treinara em frente ao espelho com a ajuda de um CD. No
terceiro dia na cidade a mãe sugeriu que visitassem o bairro de Montmartre.
Depois de subirem até ao Sacré Coeur e terem bebido um chocolate quente foram
até à Place du Tertres. Quando viu todos aqueles pintores ficou verdadeiramente
impressionada e pensou: -“Eu tenho de ter um retrato meu para nunca mais me
esquecer que alguém me pintou sobre o céu de Paris”. Não conseguia evitar esta
visão romântica da cidade que sempre viu retratada nos filmes.
Estava deslumbrada com aquela
cidade e ao contrário do que seria de esperar queria ver tudo que fossem
museus, igrejas, monumentos. Tinha decidido que a Disneyland Paris ficaria para
o fim, no caso de terem ainda algum tempo livre. Naquele sítio sentia-se como
se fizesse parte de todas as paredes que a rodeavam. Deu uma volta pela praça e
olhou, atentamente, para todos os quadros de retratos expostos a fim de decidir
qual seria o pincel que ia materializar as suas feições no papel. Decidiu que
preferia um retrato clássico pintado a preto e branco e em carvão. Comparou os
desenhos com as fotografias dos modelos que apareciam expostas ao lado e depois
de quarenta minutos percebeu que o senhor de boina cinzenta era o melhor de
todos. Ele conseguira captar nos seus três quadros expostos a verdadeira
expressão dos modelos e o seu traço era perfeito e suave. Se aquele pintor não
fizesse um bom trabalho mais ninguém faria, pensou. Depois da decisão tomada,
soltou uma frase no seu francês tímido:
- Bonjour,
pourriez-vous déssiner mon portrait, s'il vous plait? Vous êtes libre
maintenant?
O
homem olhou-a por dois minutos e não disse nada. Pegou no lápis e carvão e
disse:
- Asseyez-vous sur
cette chaise, mademoiselle, et regardez-moi. Je vais commencer. Ela assentiu com a cabeça e fez o
que o homem lhe pediu. Durante duas horas quase não se mexeu e teve o maior
cuidado para respirar o menos profundamente possível. Estava tão ansiosa pelo
resultado que durante aquele tempo não conseguiu pensar em mais nada. De vez em
quando percebia algum desconforto no pintor, mas achou que pudesse ser apenas por
causa do sol que batia forte. Quando o homem terminou conseguiu ver na sua
expressão um verdadeiro desalento. Levantou-se, pousou o lápis no cavalete e
disse em francês:
-Pinto desde os dez anos e faço retratos aqui há mais de quinze.
Nunca tinha visto uma coisa assim. Peço que me desculpe, mas não a consigo
desenhar. Vejo-a e compreendo os seus traços, mas a sua face é impossível de
materializar em papel. Não consigo explicar este fenómeno e provavelmente
achará que sou louco, talvez seja. Procure outra pessoa que consiga fazê-lo. O
que desenhei está aqui e não lhe cobrarei nada.
Ela ficou sem saber o que dizer e
não estava a perceber bem o que o homem lhe queria dizer. Quando pegou no papel
ficou estática. Não se reconhecia naquele desenho nem fazia ideia de quem
poderia ser aquela pessoa. O pintor desvirtuou a sua expressão completamente.
Ainda conseguia ver qualquer coisa de si, mas não sabia explicar o quê. Seria o
formato dos olhos? Talvez as maçãs do rosto. Não conseguia perceber o que
daquela imagem lhe pertencia, mas era muito pouco.
A mãe encorajou-a a procurar
outro pintor mas ela negou-se a visitar aquele espaço de novo e desistiu da
ideia de ter um retrato pintado em Paris.
Durante os anos seguintes visitou
Roma, Veneza, Londres, Atenas e mais umas quantas cidades europeias. Em todas
elas pediu uma retrato e em todas elas se passou exatamente o mesmo. Ninguém a
conseguiu desenhar e ninguém conseguia explicar aquele estranho fenómeno. Os
desenhos finais eram perfeitos e muito bem trabalhados, mas ela nunca se
conseguia ver naqueles traços de carvão. Era como se a sua expressão não
tivesse alma nem significado.
Aos vinte e nove anos, prestes a
completar os trinta voltou a Paris para o casamento de uma amiga. Não sabia
muito bem o que esperar daquela viagem. Tinham passado quase quinze anos desde
a última visita e durante todo esse tempo a “maldição” do retrato não lhe saía
da cabeça.
O casamento seria numa quinta na
periferia da cidade e antes de voltar a Portugal teria três dias para visitar
alguns locais de Paris. Os convidados eram na sua maioria franceses e por isso
não conhecia quase ninguém, o que não a impediu de se divertir bastante. Estes
quinze anos deram-lhe a vantagem de ter tido tempo para aperfeiçoar a língua
francesa e por isso conseguiu manter conversas casuais mas estruturadas com
quase todos os convidados da mesa. Sabia de antemão que calharia na mesa dos
solteiros e isso animava-a já que o fim de uma longa relação a tinha deixado
com marcas duras e sentia que precisava de conhecer pessoas novas.
Não havia, propriamente, ninguém
na mesa que tivesse captado a sua especial atenção apesar de serem todos homens
bastante atraentes e da sua faixa etária. Aquela relação tinha-a massacrado
tanto que senti-a que perdera o jeito para se apaixonar de novo.
Já era tarde quando cortaram o
bolo, mas a festa continuava tão animada que mal sentia os pés de tanto dançar.
Quando finalmente se sentou na mesa com a sua fatia de bolo reparou que o
guardanapo do seu lado esquerdo tinha sido desenhado por alguém. Pensou se
poderia ter sido mesmo o Jean.
Jean era o rapaz que tinha estado
sentado ao seu lado durante todo o jantar. Pegou no guardanapo e aí viu o
desenho com melhor nitidez. Não conseguia acreditar no que estava a ver. Era o
seu retrato feito com uma caneta bic. Era ela sem tirar nem pôr, com o cabelo
apanhado e os seus brincos de pérola. Quinze anos depois alguém tinha
conseguido fazer o seu retrato e estava em Paris.
Não conseguiu disfarçar a emoção
infantil por se ver finalmente desenhada num papel e mastigou o bolo sem sequer
lhe sentir o gosto tal era a excitação. Jean voltou à mesa com o seu pedaço de
bolo. Não queria ser evasiva, mas tinha que lhe perguntar:
- Foste tu que desenhaste isto? –
Perguntou directamente.
-Sim, porquê? Quer dizer, espero
que não te importes. Como não sei dançar tinha que me entreter com qualquer
coisa. Depois das dedicatórias, aproveitei a caneta e comecei a desenhar.
Ela sorriu e depois riu muito.
Soltou umas quantas gargalhadas seguidas. Não sabia bem se de alívio se de
felicidade. Ele continuava sem entender nada, mas também não perguntou.
Limitou-se a acompanhá-la naquilo que parecia uma parvoíce. Riu muito alto com
ela, não sabia se do álcool se por solidariedade. Ela levantou-se, arrastou-o
para a pista e dançaram ao som de um música que nenhum dos dois conhecia.
Ele afinal sabia dançar e ela
tinha uma alma e um retrato desenhado em Paris.
Love
C.